Entre Água e Terra
O mar era seu destino.
As marolas embalavam o navio quando Marina Oceana deu à luz ao príncipe.
Assim que chorou, foi levado ao ancião que acompanhava o procedimento. Ele pegou o bebê em seus braços e andou até o convés. Lá um grupo formado pelos representantes das famílias da elite local aguardava em silêncio:
— Este menino não será um Dragão de Água, nem um Dragão de Terra — começou o ancião, e isso bastou para que surgissem os burburinhos.
— Mas sinto uma forte energia vindo dele — continuou. — Vocês são tolos por pensar que usar pedras para manipular elementos é uma benção. Digam-me, crianças, vocês olharam para o céu essa manhã?
Todos se calaram e voltaram a atenção para o velho homem.
— O Deus Chi abençoou este menino com um grande potencial. Com tamanha graça ele será um Mestre de Chi — concluiu. Em seguida, entregou o bebê para uma dama de companhia levá-lo até a mãe.
Uma festa começou no convés.
Na cabine, o peito de Ravi Feme se inflou ao ouvir a notícia sobre seu filho.
— Um Mestre de Chi! Ouviu isso, Marina?
— Ouvi — respondeu a mãe recebendo o menino em seus braços com um sorriso.
— Como devemos chamá-lo? — perguntou Ravi, sentando-se ao lado da esposa.
— Jehan…Jehan Feme Oceana.
— Jehan! Sayuri! Mais rápido, suas lesmas cansadas! — Gritou John, sorrindo.
— Cala… a… boca… — Ofegou Sayuri, esforçando-se para continuar na subida.
— Isso não é justo, John. Você é um menino guaxinim, subir em árvores é muito fácil para você. – Reclamou Jehan.
— Mas foi você quem fez a aposta. Você é idiota? — ele debocha, porém logo franze as sobrancelhas — Espera. Menino guaxinim? É assim que os humanos me chamam? Que coisa ridícula! Eu sou um tanuki. Ta-nu-ki.
Um grito chamou atenção dos dois. Sayuri estava caindo do galho. Os dois garotos saltaram para salvá-la. Jehan conseguiu segurar a mão da amiga, enquanto também caia. Num movimento instintivo, John prendeu sua cauda em um galho e segurou os tornozelos do príncipe. Os três ficaram pendurados como um grande pêndulo até seus corações desacelerarem.
Após o susto, a aposta foi ignorada e os três subiram juntos até o galho mais alto da árvore, onde sentaram para admirar a vista. Colocaram a menina no meio por segurança.
— Olha isso! Dá pra ver toda ilha daqui! — Empolgou-se Sayuri.
— Não dá, não — Jehan corrigiu. — Ainda tem muitos lugares para a gente descobrir. Mas daqui de cima eu consegui fazer um mapa mental para nossas próximas expedições.
— Sério? — ela só tinha olhos para Jehan.
— Que tal a gente explorar aquela região? — John apontou para um aglomerado de cabanas.
— Aquele é o campo de treinamento de Dragões de Água – explicou o príncipe. — Não tem nada interessante lá.
— Como não? Deve ser incrível ser um Dragão, poder manipular a água — os olhos do pequeno tanuki brilhavam. — Nunca mais ia ter que carregar aquelas malditas vasilhas com água do poço!
— Eles precisam de cristais elementais para fazer isso. Não é tão incrível assim — contrapôs Jehan dando de ombros.
— É sim! Será que quando eu crescer poderei ser um Dragão? — sua empolgação começou a diminuir ao ouvir a própria pergunta.
— Você é um ser de mana, John — Jehan sorriu para o amigo —, é muito mais legal que um humano com uma pedrinha.
— O que tem de bom em ser um trevoso nesse mundo? — John cerrou os punhos ao perguntar, pois ele sabia a resposta. Nada.
— Esse termo é idiota! A Deusa Mana deve chorar sempre que escuta. — Jehan franziu as sobrancelhas e num impulso inclinou-se para encarar John.
— Mas é como todos os humanos nos chamam. Trevosos — John respondeu à provocação com o mesmo gesto.
— Meninos, não briguem — Sayuri interferiu, pegando cada um pela orelha — Jojo, você nos salvou e não precisou de pedra nenhuma para isso. Jeje, se esse é o sonho dele, você não deveria criticar. Ele é seu amigo. Ajude — O volume de sua voz não aumentou, a tranquilidade em suas palavras transpareciam calma. Contudo, seu semblante denunciava seu fracasso em manter-se serena.
— Ai! Tudo bem! Você tem razão! Não é, Jehan? — Disse John tentando escapar do puxão.
— Sim, sim! Está certa! Está certa! Solta, por favor, Say. — Pediu Jehan.
— Vão brigar de novo?
— Nunca mais! — os dois responderam em uníssono.
— E…
— Desculpe, John.
— Desculpe, Jehan.
— Ótimo! — Sayuri concluiu soltando as orelhas e passando seus braços por trás do pescoço de cada um trazendo-os para perto de seu rosto num meio abraço. — Amigos não devem brigar.
Jehan já havia se acostumado com os castigos e abraços de Sayuri, pois ele e o amigo eram como cão e gato. Assim que se desvencilhou, reparou que o rosto de John estava corado, e que ele evitava olhar para Sayuri. Não era a primeira vez que aquilo acontecia. O príncipe ficou intrigado, mas achou melhor não perguntar.
— Então está decidido! — Começou Jehan levantando-se. — Quando eu crescer vou ajudá-lo! Eu, Príncipe Jehan Feme Oceana, juro solenemente que não vou fazer nada de bom. Ops, não era isso. Prometo lutar para que no futuro seja possível um ta-nu-ki se tornar um dragão.
O príncipe foi aplaudido por seus dois súditos.
— Agora vamos descer, preciso voltar ao castelo. Quero fazer o desenho do mapa para nossa próxima aventura — falou levantando-se no galho.
— E qual será? — Quis saber Sayuri.
— Acho que podemos começar com as minas de cristais elementais de água — respondeu.
— Tá falando sério?! — John se ergueu num salto e quase caiu da árvore de tanta empolgação.
— Se vamos fazer de você um dragão, precisamos de uma pedra — o príncipe disse estendendo a mão para ajudar o tanuki a se equilibrar.
— O… Obrigado… — com a voz embargada o guaxinim agradeceu. Ele virou o rosto para que seus amigos não pudessem ver a sua felicidade transbordando por seus olhos. Com um aceno, despediu-se e desceu da árvore.
Ver a felicidade de John, fez o jovem monarca ter certeza que faria até o impossível para ajudá-lo a realizar seu sonho de ser um Dragão de Água.
O príncipe retornava de suas aventuras pela ilha quando ouviu vozes alteradas vindas da sala de governo. Sua curiosidade o carregou até a estreita fresta na porta por onde se esforçou para enxergar o que estava acontecendo.
— Quantas vezes terei que repetir? Jehan é filho de Oceana e nunca irá para Tenki.
Ele reconheceu aquela voz de arrepiar a espinha. Era sua tia, Nerissa Oceana. Conhecida como Soberana das Águas, Líder da ilha Oceana e Representante Mor do Governo Mundial. A discussão continuava:
— Mas ele é meu filho. Nós firmamos um acordo. Ele é tanto de Tenki quanto de Oceana — Ravi respondeu.
Jehan conseguiu ver seu pai parado em frente à grande mesa de vidro de Nerissa. Atrás dele, dois guardas aguardavam em prontidão.
—Não se finja de tolo, Feme. Sabe muito bem que serviu apenas como o fornecedor da semente para gerar meu sobrinho. Você não passa de um mísero refém — falou a soberana, enquanto tamborilava os dedos lentamente no braço da poltrona em que estava sentada.
— Isso logo irá mudar. Gaia não será chantageada para sempre! — Ravi começava a se exaltar.
Nerissa revirou os olhos antes de continuar sua fala.
— Gaia Feme… Qual é mesmo o titulozinho que ela carrega? — fingiu esquecimento.
— Majestade da Ilha da Terra — ele respondeu entre dentes.
— Hum…Que seja… Ela não passa de uma criança fraca — Nerissa desdenhou.
— Lave sua boca para falar da minha irmã! — Ravi socou a mesa.
O príncipe não conseguia entender o que estava acontecendo. Ele sabia que sua família tinha alguns problemas de relacionamento, mas nunca imaginou que ouviria tais palavras.
— Não ouse levantar a voz para mim, macho imundo — o tom soturno de Nerissa fez o cunhado recuar. Seus dedos continuavam tocando a poltrona em ritmo inalterado. — Se Tenki fosse bem administrada você não estaria nessa situação. Entretanto, sua querida irmã preferiu mandá-lo como refém ao invés de romper ligação com Volcana
— Ela não me obrigou a vir. Vim porque conheço seu caráter. Todos conhecem. As quatro grandes ilhas que formam o Governo Mundial deveriam viver em harmonia. Mas você busca a guerra! — Ele acusou.
—Mantenha sua língua dentro da boca, Feme. Se não quiser perdê-la.
As palavras de Nerissa fizeram Ravi tremer por um instante. Após um longo suspiro ela continuou:
— As governantes de Volcana e Tenki não entendem o risco que os trevosos são para Orbis. Eles devem ser controlados e subjugados. O Deus Chi nos deu o poder para tanto.
— Você é louca! Eles são criaturas como a gente, têm os mesmos direitos a usufruir desse mundo.
O tamborilar cessou. Nerissa levantou-se e foi até Ravi encarando-o com a altivez que sua posição lhe permitia.
— Eu poderia entender que não há como mudar a mente de um energúmeno como você, mas suas ideias estúpidas estão afetando meu sobrinho, e isso eu não permitirei. Prendam esse traidor. — A soberana ordenou.
Ao ver os soldados partindo para cima de seu pai, Jehan correu para dentro da sala na tentativa de ajudá-lo. Porém ele já havia sido dominado pelos guardas e estava desacordado. Ignorando a presença da criança, os soldados levaram Ravi rumo à masmorra.
—Não! Pai! O que estão fazendo!?
Jehan tentou impedi-los, mas logo ouviu o sussurro de sua tia em seu ouvido. Aquela voz tinha o poder de congelar seu corpo e acelerar seu coração.
— Seu pai é um traidor, meu príncipe. Ele confabulou contra o Governo Mundial se unindo aos trevosos…
— As criaturas de mana não são trevosas — o garoto interrompeu.
— Cuidado, querido… Por essas ideias seu pai está sendo preso — a mudança de tom foi acompanhada de um toque firme em seu ombro — E se você não quiser que ele seja subtraído de sua condição de existência, seja um garotinho obediente e sem esses pensamentos absurdos.
As palavras de Nerissa entraram como uma faca em seu peito e ele não pôde conter as lágrimas. Aquela mão pesava como uma rocha que o impedia de correr. Logo que ela se afastou, ele partiu para o quarto de sua mãe. Jehan apelou para que Marina o ajudasse, mas ela não desafiaria a irmã mais velha.
Naquela mesma noite, um guarda real trouxe a notícia que um incêndio estava assolando o lado oeste da ilha. Ao ouvir a informação Jehan perdeu o chão. Essa era a localização da vila dos seres de mana. Apenas um pensamento lhe vinha à mente: John! Ele precisava correr.
As chamas iluminavam a noite. John! O nome de seu amigo retumbava em sua mente. Conforme corria foi percebendo que não havia mudança no comportamento das pessoas nas ruas. Era como se nada estivesse acontecendo. John! Ele ignorou tudo e seguiu correndo.
Quando chegou próximo a vila, um cerco de Dragões de Água não permitia que ninguém se aproximasse. Eles estavam fechando a única entrada e saída do local. O calor que emanava era suficiente para incomodar os olhos e a pele. Jehan tentou passar, mas foi atingido por uma bomba de água que o lançou alguns metros para trás.
— Ninguém pode passar — anunciou o Dragão.
O garoto se levantou tossindo, na tentativa de tirar todo o líquido que entrara em seus pulmões com o ataque. Ele estava tão encharcado quanto irritado.
— Se vocês podem jogar água em mim, por que não estão lá apagando o incêndio?! — O garoto conseguia ver ao longe as criaturas correndo tentando salvar a si e suas famílias.
— Por que estão parados aqui!? Vocês são Dragões de Água! Apagar esse incêndio não é nada para vocês! Vão! Pessoas estão morrendo!
— Não são pessoas, senhor, são trevosos — um soldado respondeu sem sequer olhar para o garoto.
Jehan sentia seu peito doer. Não sabia se era da água que engolira ou do desespero que crescia a cada negativa vinda dos únicos que seriam capazes de apagar aquelas chamas.
O calor que emanava da vila o estava machucando. Jehan se arrepiava pensando no tamanho da dor e do medo que seu amigo estaria sentindo em meio àquele caos.
— São habitantes da ilha! São vidas! – Jehan insistia com todas as suas forças.
— Não temos obrigação de ajudar essas criaturas. A lei diz que eles devem cuidar de seus próprios problemas – o homem falou mantendo sua postura
— Que lei absurda!
O soldado calou-se.
— Ajudem! É uma ordem! Sou um príncipe! — tentou apelar para seu título.
— Temos ordens superiores para não interferir — outro soldado revelou.
— Então me deixem passar! — o garoto levava as mãos à cabeça e andava de um lado para o outro tentando encontrar uma brecha.
— Não podemos, senhor.
Enquanto o soldado falava, Jehan reconheceu seu amigo carregando uma maldita vasilha de água. Seu sangue fervia e um calor tomou seu corpo.
— John! — chamou.
Mas o tanuki não ouvia em meio aos gritos e ao barulho das madeiras estalando com as chamas.
Vendo-se sem opções, Jehan se chocou contra a barreira de soldados que o seguravam como podiam. A determinação dele os intimidava a ponto de não ousarem atingi-lo com mais água.
— Estou implorando! Me deixem passar !.
O príncipe se debatia com toda sua força. Em meio a luta, conseguia ver John correndo de casa em casa ajudando com a pouca água que conseguia carregar. De fato, seu amigo era muito mais heroico do que os Dragões que ele sonhava se tornar.
Sua garganta doía de tanto gritar e sua voz já não queria mais sair. Lágrimas brotavam sem parar. Seu corpo queimava por dentro, quando John finalmente o enxergou. Seus olhos se encontraram por um instante. Tempo que o tanuki usou para dizer palavras inaudíveis para Jehan. Contudo, os movimentos dos lábios do menino de mana foram muito claros, “cuide da Sayuri por mim”.
Ao entender a mensagem do amigo, seus olhos se arregalaram e seu coração ficou prestes a saltar de seu peito. Porém, antes que pudesse responder, uma enorme viga em chamas caiu sobre o jovem tanuki. Então tudo ficou preto. Sua última lembrança foi o som da vasilha quebrando.
Jehan acordou num sobressalto. Já era de manhã e ele estava em seu quarto. Desejou que tudo fosse um pesadelo, pulou da cama e correu até a vila incendiada. Havia mortos por todos os lados. Os poucos sobreviventes estavam ajudando os feridos. O príncipe andou por todo lugar, mas não conseguiu identificar seu amigo entre tantas vítimas. O cheiro dos corpos carbonizados estava lhe causando náusea.
— Jeje — uma voz feminina o chamou.
— Say…
Eles se entreolharam, sem dizer mais nenhuma palavra, se abraçaram e choraram. Seu choro poderia durar horas, mas foi interrompido por Dragões que se aproximaram ao reconhecê-los.
— Senhor, a Soberana das Águas deseja vê-lo — informou um dos guardas.
Jehan se afastou da amiga enxugando as lágrimas.
— Ele queria ser um de vocês… — Jehan olhou para o soldado — ele queria ser um maldito Dragão de Água! E vocês deixaram ele morrer! Eu deixei ele morrer! — o garoto socou o homem que apenas se defendia.
— Senhor, a Soberana da Águas deseja vê-lo — ele repetiu.
— É só isso que você fala?! Eu não vou!
— Sugiro que o senhor obedeça — outro soldado o alertou, parando às costas de Sayuri e colocando a mão sobre o ombro da menina.
O menino tremeu ao ver a cena.
— Entendi. Deixem ela ir. Vou obedecer.
O príncipe foi escoltado até a sala de governo.
Parado diante daquela mesa de vidro, lembrou de seu pai. O fracasso em defender as pessoas que amava, começou a torturar sua alma. Ele sentia o peito queimar enquanto via Nerissa terminar de ler um documento. Assim que a soberana acabou sua leitura, assinou e afastou o papel.
— Sente-se, meu sobrinho — ela convidou apontando para a poltrona em frente a ela.
— Eu não…— porém antes de concluir, foi sufocado por um olhar de desaprovação que o fez sentar.
Batidas na porta chamaram atenção dos dois. Era Alfredo, assistente de Nerissa, trazendo uma bandeja com duas xícaras de chá. A primeira foi servida para a soberana, em seguida, Jehan recusou a sua com um aceno de cabeça.
— Obrigada, Alfredo. Por favor, feche a porta ao sair — ela agradeceu.
Sem nenhuma pressa, a governante experimentou a infusão antes de perguntar:
— Você lembra do que aconteceu na noite passada?
— Qual parte? — Os olhos do garoto a fulminaram.
Nerissa saboreou outro gole de chá.
— A parte que você deixou um batalhão de Dragões desacordados e apagou um incêndio fora de controle com apenas uma onda de chi.
— Eu não fiz isso.
—Claro que não…— suspirou. —Eu que fiz — a soberana debochou.
Sua tia começou a mexer o chá sem usar qualquer talher. Bastava simples movimentos circulares de seu dedo sobre o líquido para ele se mover. Jehan sempre achou aquele truque sensacional, mas não era momento para admiração.
— Não minta para mim, querido — ela concluiu.
— Não estou mentindo! — Jehan se deixou levar pela emoção.
Contudo, bastou Nerissa levantar a sobrancelha para fazê-lo se calar. Ele sentia como se estivesse sendo envolto por uma serpente monstruosa. Qualquer movimento errado, ela o esmagaria.
— Não… Não lembro o que aconteceu — o garoto reformulou sua frase, titubeando.
— Sendo assim, eu peço que conte-me o que se lembra.
A educação e postura de sua tia deixavam Jehan tanto enojado quanto admirado. Nada era capaz de abalar aquela mulher.
— Eu cheguei lá, pedi ajuda, levei um banho, fui ignorado e apaguei. Quando acordei estava em meu quarto. — Ele respondeu tentando esconder sua falta de confiança.
— Hum, compreendo… — Nerissa disse sem expressão.
— Estou dispensado?
A soberana tornou a beber sem pressa. Jehan não ousava se levantar sem sua permissão. Assim que ela engoliu o chá, voltou a falar:
— A partir de hoje, você terá aulas com os melhores mestres de chi de Oceana. Será educado para se tornar um líder adequado.
Ele sentiu a serpente começando a lhe apertar, e mesmo assim tentou argumentar:
— Mas eu não quero…
Nerissa sorriu, o que fez o menino arrepiar.
— Você quer… – ela o encarou, parecendo enxergar sua alma. — E sabe porquê você quer? Porque seu amado pai ainda está vivo nas masmorras.
— Ainda? — Jehan empalideceu.
— Vejo que compreendeu. Posso contar com sua obediência?
O príncipe baixou o olhar. Era difícil encarar os olhos de Nerissa, eles pareciam refletir o próprio oceano impondo sua vontade.
— Sim — ele respondeu mal conseguindo respirar.
— Sim, o que? — Ela perguntou com desaprovação.
— Sim, senhora — o menino corrigiu.
Esse foi o abraço final da serpente. Não havia mais escapatória para ele.
— Você é um bom garoto, esperto e inteligente. Vou torná-lo um homem de valor, um governante. Será o melhor dos melhores, assim como eu. Ao final de tudo, irá me agradecer.
— Sim, senhora.
— Agora vá — ela ordenou voltando a pegar documentos para ler.
— Obrigado, senhora — Jehan saiu daquela sala sem forças para lutar. Seguiu para a biblioteca e começou a estudar.
Conforme o príncipe crescia, suas habilidades se destacavam. Controlar o chi foi apenas uma das competências que ele desenvolveu. Junto a isso, foi educado em política, economia, administração e todas as ciências necessárias para governar. A cada etapa concluída sua personalidade fica mais parecida com a de sua tia.
Aos dezesseis anos, Jehan fora aprovado por todos os seus mestres com louvor. Em sua cerimônia de aprovação, Nerissa o entregou um colar com o brasão da família Oceana e o indicou como seu sucessor. O príncipe agradeceu, e a partir daquele dia, passou a segui-la como um bom pupilo.
A Soberana das Águas o levava até às reuniões do Governo Mundial. Em um desses encontros, o príncipe percebeu que a Imperatriz Volcana, líder da ilha do fogo, tinha o discurso oposto ao de Nerissa. Assim que saíram da reunião o príncipe perguntou:
— Por que a Imperatriz Volcana não obedece às regras do Governo Mundial?
— Ela acha que tem o poder para nos desafiar, porque pariu uma criança elemental.
— Criança elemental? — ele quis saber.
— Esqueça isso. Vamos embora — a governante cortou o assunto.
Algum tempo mais tarde, o Governo Mundial declarou guerra à Volcana. Nerissa passava a maior parte do tempo fora de Oceana e deixou seu sobrinho cuidando das questões da ilha. O príncipe comandava com a mesma firmeza e rigidez da soberana.
Jantares de negócios eram corriqueiros entre os membros da elite. Em uma noite, Jehan foi convidado para a casa dos Smithys. Esses eventos não eram seus favoritos, mas necessários para manter a economia em ordem. Ele preparou os documentos, vestiu seu brasão da família e partiu. A carruagem estava esperando para levá-lo, porém a noite parecia agradável para uma caminhada. Além disso, a pé, era possível trocar gracejos com as moças da cidade pelo caminho. Sendo assim, Jehan dispensou o cocheiro e seguiu seu caminho até a casa da família Smithy.
Lá chegando, foi recebido por uma escrava trevosa que o guiou até a sala da mansão.
— Por favor, senhor, aguarde aqui. Nossos mestres logo o receberão — ela informou. Jehan apenas a ignorou.
O tempo passou e ninguém apareceu. A trevosa havia desaparecido. Tudo estava silencioso demais.
— Olá! — ele chamou. — Tem alguém aí? — Então ele sentiu um cheiro que o fez tremer. Era fumaça. Antes que pudesse correr para ver a origem do fogo, sentiu algo atingir sua cabeça e tudo escureceu.
Naquela noite, Nerissa estava retornando da sede do Governo Mundial, quando viu ao longe um clarão vindo da ilha.
— Acelerem o navio — ordenou.
Assim que pisou em terra firme, um soldado correu para avisá-la:
— Senhora, ocorreu um incêndio na mansão dos Smithys.
Algo a estava incomodando. Incêndios não eram comuns em Oceana.
— Há alguma vítima?
— Sim, senhora.
— Que lástima. Mande flores aos parentes.
—Mas, senhora… – o soldado engasgou.
— Mas… Fale logo, tenho mais o que fazer.
—O príncipe Jehan estava na casa.
O semblante de Nerissa não se alterou. Mas seus pensamentos a traíam. Jehan!
— O que ele estava fazendo lá? — Ela quis saber.
— Reunião de negócios, senhora.
— Leve-me até ele —Jehan! — Rápido!
— Sim, senhora.
Uma carruagem levou Nerissa até a casa em ruínas. O fogo já havia sido apagado.
— Por que estamos aqui? Jehan ainda não voltou para o castelo? — ela sentiu seu coração acelerar pela primeira vez em anos.
— Não senhora, o príncipe ainda está aqui.
Nerissa, desceu da carruagem e foi até os escombros. Jehan! Seus olhos procuravam por seu sobrinho entre os soldados que estavam recolhendo os mortos.
— Como isso aconteceu? Como um incêndio destruiu uma área tão grande? Onde estavam os Dragões?! — a aflição em seu peito a fez perder a calma.
— Na guerra, senhora. — um soldado respondeu. — Há indícios de que o incêndio foi criminoso. Os trevosos que trabalhavam na casa armaram para eliminar seus donos e o príncipe.
— O príncipe? — ela perguntou. Seu olhar fez o soldado engolir a seco. — Meu Jehan não morreria dessa maneira.
— Foi uma armadilha, senhora. Ao que parece, os trevosos que elaboraram o plano eram sobreviventes do incêndio de anos atrás. O objetivo deles era o príncipe.
— Cale a boca e encontre meu sobrinho — ordenou. Sua voz arrepiou até os cavalos da carruagem.
—Nós já o encontramos, senhora.
— Então traga-o até mim.
Dois soldados pararam com um cadáver em frente a ela. O corpo carbonizado usava o brasão da família Oceana. Ela não sabia como reagir. Lágrimas escorriam por seus olhos contra sua vontade. Pela primeira vez em sua vida, Nerissa Oceana, Soberana das Águas, perdeu.
Algum tempo depois, em uma estalagem numa ilhota qualquer, um casal pediu por um quarto.
— Bem-vindos à estalagem do Ernie! Temos um quarto perfeito para um lindo casal apaixonado. Por favor, apenas digam seus nomes para eu registrá-los.
— Sou Je… Digo… John, e esta é Sayuri.
To be continue…
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